Sentado na cadeira de sempre olhava as mãos. Em tudo esbarravam antes que os dedos conseguissem se firmar em algum objeto. Naquela manhã estavam especialmente agitadas e o vidro com os pequenos comprimidos brancos balançou mais que o usual antes de ser aberto. Engoliu dois deles com ansiedade e o último gole do café já frio na xícara. A tampa plástica dançou na abertura até fechá-lo. Devolveu-o ao bolso trêmulo do casaco e virou o rosto para a janela querendo ver o sol que não estava ali.
As mãos indecisas sobre o colo esfregavam a dor da idade que começara aos poucos, anos atrás, envolvendo apenas os nós dos dedos. Hoje a dor já passeava junto com as rugas e as manchas que lhe subiam os braços até os ombros e se deixavam cair pelas costas misturando-se às feridas da vida sozinha. Tentou encontrar em meio a outras tantas preocupações com remédios, dores e o sono que já não tinha, um motivo para se levantar. Desistiu engolindo saliva e o gosto do café frio ainda presente. Passeou os olhos turvos pela sala empoeirada. A estante com os livros há muito fechados, o porta-retrato vazio, o sofá bege manchado e gasto combinando com o carpete.
Levou a mão trêmula ao rosto e deixou que os dedos pousassem sobre a bochecha. Coçou as manchas, sem pressa, com os lábios entreabertos. Os poucos fios de barba já brancos e sem determinação se deixaram embalar pelos dedos inseguros. A mão aos poucos foi baixando e por instantes parou no ar, como as borboletas, agitada, indecisa, trêmula. Olhou-a flutuar ali por alguns instantes. Irritou-se com o movimento, irritou-se mais uma vez com o vôo independente da mão que há muito não controlava. Respirando fundo levantou os olhos e os deteve na luminária que guardava mariposas.
Pensou em voltar para a cama. Dormir. Dormir para não ver a velhice, mas o sono desistira dele pelo caminho. O sono o deixara sozinho com seus olhos abertos e os pensamentos confusos. Deitava e ficava imóvel tentando enganar-se que dormia. Querendo empurrar com as pálpebras o tempo que se tornara única companhia. O tempo. Que ficava ao lado, sempre. Para sempre. Tempo que não o deixava ir, nem tampouco retornar. Que não o deixava esquecer, mas não lhe facilitava as lembranças. Tempo que não o deixava mais decidir, apenas lamentar, sem efeito, para mariposas confinadas. Tempo que lhe roubava o calor do café e lhe trazia em mãos as dores.
Lembrou-se da foto arrancada do porta-retratos por ele mesmo, em um momento de raiva, quando ainda não existia o vôo. As lágrimas transbordaram de seus olhos lavando as manchas no rosto, salgando os lábios, caindo sobre as borboletas pálidas em seu colo. Queria conseguir dormir, sem o tempo. Queria conseguir dormir sozinho. Sonhava acordado com um sono sem dor, sem lembranças, sem pressa. Quis enxugar os olhos, mas o bater das asas pálidas o impediu. Derrubou-as sobre a mesa com força. Com raiva. Deixou seus olhos chorarem. Deixou-os, olhando as mãos, chorando o tempo.
(Publicado no Caderno Pensar do Correio Braziliense no dia 24 de abril de 2004.)