Friday, February 01, 2008

Manhã no hotel

No horizonte, o sol espreguiçou seus longos braços expulsando a noite. Janela aberta, suave embalar das cortinas, fios da manhã a invadir o quarto. Linhas douradas a lamber o cheiro do vinho, dos beijos e da fina poeira a dançar o dia deslizaram revelando contornos da cama, a ponta do travesseiro, seu rosto. Nos lençóis, leve marola do respirar de um sono tardio. Ombro nu, nau à deriva em quase sonhos, entregue ao terno roçar da barba rala e dos lábios ainda acordados. A ponta do meu nariz correu a curva até a nuca. Tímido eriçar da pele, náufragos espalhados, ombro, nuca, braço. Em abraço, acolhi náufragos, nau, sonhos a começar. Afoguei os olhos na claridade de seus cabelos. Um chá, uma tarde chuvosa no Leblon, várias vezes uma praça colorida em Londres, o silêncio de uma canoa rio abaixo, beijo suado no alto de uma pedra. Sorri. No sorriso, canoas, beijos, praças a flutuar no quarto cheio daquela manhã insistente. Quis o sono, a noite de volta, mais de você.

Borboletas pálidas

Sentado na cadeira de sempre olhava as mãos. Em tudo esbarravam antes que os dedos conseguissem se firmar em algum objeto. Naquela manhã estavam especialmente agitadas e o vidro com os pequenos comprimidos brancos balançou mais que o usual antes de ser aberto. Engoliu dois deles com ansiedade e o último gole do café já frio na xícara. A tampa plástica dançou na abertura até fechá-lo. Devolveu-o ao bolso trêmulo do casaco e virou o rosto para a janela querendo ver o sol que não estava ali. As mãos indecisas sobre o colo esfregavam a dor da idade que começara aos poucos, anos atrás, envolvendo apenas os nós dos dedos. Hoje a dor já passeava junto com as rugas e as manchas que lhe subiam os braços até os ombros e se deixavam cair pelas costas misturando-se às feridas da vida sozinha. Tentou encontrar em meio a outras tantas preocupações com remédios, dores e o sono que já não tinha, um motivo para se levantar. Desistiu engolindo saliva e o gosto do café frio ainda presente. Passeou os olhos turvos pela sala empoeirada. A estante com os livros há muito fechados, o porta-retrato vazio, o sofá bege manchado e gasto combinando com o carpete. Levou a mão trêmula ao rosto e deixou que os dedos pousassem sobre a bochecha. Coçou as manchas, sem pressa, com os lábios entreabertos. Os poucos fios de barba já brancos e sem determinação se deixaram embalar pelos dedos inseguros. A mão aos poucos foi baixando e por instantes parou no ar, como as borboletas, agitada, indecisa, trêmula. Olhou-a flutuar ali por alguns instantes. Irritou-se com o movimento, irritou-se mais uma vez com o vôo independente da mão que há muito não controlava. Respirando fundo levantou os olhos e os deteve na luminária que guardava mariposas. Pensou em voltar para a cama. Dormir. Dormir para não ver a velhice, mas o sono desistira dele pelo caminho. O sono o deixara sozinho com seus olhos abertos e os pensamentos confusos. Deitava e ficava imóvel tentando enganar-se que dormia. Querendo empurrar com as pálpebras o tempo que se tornara única companhia. O tempo. Que ficava ao lado, sempre. Para sempre. Tempo que não o deixava ir, nem tampouco retornar. Que não o deixava esquecer, mas não lhe facilitava as lembranças. Tempo que não o deixava mais decidir, apenas lamentar, sem efeito, para mariposas confinadas. Tempo que lhe roubava o calor do café e lhe trazia em mãos as dores. Lembrou-se da foto arrancada do porta-retratos por ele mesmo, em um momento de raiva, quando ainda não existia o vôo. As lágrimas transbordaram de seus olhos lavando as manchas no rosto, salgando os lábios, caindo sobre as borboletas pálidas em seu colo. Queria conseguir dormir, sem o tempo. Queria conseguir dormir sozinho. Sonhava acordado com um sono sem dor, sem lembranças, sem pressa. Quis enxugar os olhos, mas o bater das asas pálidas o impediu. Derrubou-as sobre a mesa com força. Com raiva. Deixou seus olhos chorarem. Deixou-os, olhando as mãos, chorando o tempo. (Publicado no Caderno Pensar do Correio Braziliense no dia 24 de abril de 2004.)